quarta-feira, 28 de outubro de 2015

CABINE C


Amado pelos darques do passado e pelos góticos do presente, o Cabine C é uma joia rara do pós punk nacional, um oásis sombrio para os mais atentos pesquisadores do rock brasileiro dos anos 80. Nome essencial do rock gótico brazuca e, mais do que isso, um dos pioneiros do gótico Sul-Americano.

Ciro Pessoa - o criador do Cabine C - foi também um dos fundadores do Titãs, grupo no qual permaneceu até 1984. São dele algumas composições clássicas, como Sonífera Ilha e Homem Primata. Ciro saiu do Titãs pois não estava gostando dos rumos "tropicalistas" e "reggae" que a banda tomava. Sua intenção era criar um grupo mais "roqueiro". Assim, em 1984, nasceu o Cabine C.



Cabine C -  nome inspirado em um filme de Alfred Hitchcock e no livro "Serafim Ponte Grande" de Oswald de Andrade.


A primeira formação do Cabine C contava com a esposa de Ciro, a tecladista Wania Forghieri, além de Edgard Scandurra (guitarra), Charles Gavin (bateria) e Ricardo Gaspa (baixo) - que havia substituído Sandra Coutinho (que passaria a se dedicar exclusivamente às Mercenárias).

Essa formação chegou a gravar uma demotape. Apresentando faixas nunca lançadas oficialmente, como "O Lado Bom da Bomba", "Sonhando", "Inundação de Amor" (depois regravada pelo Ira) e "Fim de Serafim" (um poema musicado de Oswald de Andrade), essa demo se tornou um item raríssimo!

Com músicos de reconhecido talento, a banda fez alguns shows memoráveis em São Paulo, ganhando certa notoriedade no circuito alternativo. 
O problema era que Edgar Scandurra também tocava no Ira, banda que estava começando a explodir no cenário comercial. Sendo assim, provavelmente sofrendo alguma pressão, ele abandonou a "aventura underground" do Cabine C. Ricardo Gaspa também saiu do grupo, convidado a tocar no Ira. E Charles Gavin foi para os Titãs, completando a debandada.


"O que acontece é que o Cabine C incomodava muito as outras bandas (...)
Foi uma espécie de golpe mesmo" - especulou Ciro para o programa Vitrola Verde.

A primeira formação do Cabine C: Gaspa, Scandurra, Wania, Ciro e Charles.

Após esse grave baque, o Cabine C ficou algum tempo ancorado, buscando uma reformulação. Em 1985, a banda renasceu das cinzas com uma renovada e definitiva formação: Ciro Pessoa (voz e guitarra), Wania Forghieri (teclados) e as novas integrantes Anna Ruth (baixo) e Marinella Setti (bateria) - ambas egressas da obscura banda pós punk Nº 2. A partir de então, o som do grupo assumiu de vez sua identidade: Sombrio e místico, em algum lugar entre o desespero e a delicadeza.

A formação definitiva: Anna Ruth, Ciro, Marinella e Wania.


A nova sonoridade do grupo dialogava com a música de Siouxsie & The Banshees, The Cure, Joy Division, X-Mal Deutschland, Cocteau Twins, entre outros. Em consonância, Ciro se inspirava em nomes como Edgar Allan Poe, Baudelaire e Arthur Rimbaud para produzir uma poesia altamente existencialista e desoladora. Esses ingredientes, combinados com a estética do grupo, agradaram em cheio aos darques da época e a banda logo ganhou essa alcunha. 
Ciro chegou a ser apresentado como uma espécie de porta-voz do "movimento" em uma matéria emblemática do jornal "O Estado de São Paulo".

A
pesar de ser inegável que o Cabine C estava totalmente submerso nessa atmosfera, eles procuraram rechaçar o rótulo. Compreensível, uma vez que o "darkismo" (uma espécie de proto-gótico brasileiro) era constante alvo de críticas da mídia e da opinião pública. Com base no que pesquisei, acredito que o darque oitentista foi tão ou mais perseguido do que o emo brasileiro em meados dos anos 2000.

"Somos um grupo que produz músicas sombrias porque a tristeza é um dos sentimentos mais ricos em beleza." - Ciro Pessoa para a Folha de SP.

"A melancolia é o mais legítimo dos tons poéticos."
Marinella 7 parafraseando Poe para a Folha de SP.


Diz que não é gótico e faz uma pose dessas? Típico! 

O grupo ganhou muitos admiradores, tornando-se um dos favoritos dos porões paulistanos. Assim, receberam o convite para ingressar na recém fundada RPM Discos - gravadora administrada pelo grupo RPM que pretendia ser uma alternativa independente aos grandes selos multinacionais. Refletindo sobre a tensão de entrar no concorrido circuito comercial, Ciro Pessoa confessou para a revista Bizz:

"Vamos ser jogados aos leões, não sabemos se vamos domá-los ou ser comidos".


Fósforos de Oxford (1987).

Com uma caprichada produção de Luiz Schiavon, o disco foi lançado somente em 1987 (alguns sites apontam 1986, está errado!). Curiosidade sobre o nome do álbum: Marinella trouxera algumas caixas de fósforos que um bar de Bossa Nova em Oxford (Inglaterra) oferecia como brinde aos seus clientes. Os colegas de banda gostaram de como o nome soava e assim foi batizado o "Fósforos de Oxford". 

"O nome dá uma luminosidade às ideias: à luz de fósforos." - Anna Ruth para a Bizz.


O disco abre com Pânico e Solidão, uma valsa mórbida inspirada no livro "As aventuras de Arthur Gordon Pym", de Edgar Allan Poe. A letra, que também pode ser interpretada como uma metáfora para a decadência humana, é um resumo do espírito do disco e combina perfeitamente com a melodia fúnebre. Em seguida, Lapso de Tempo, conduzida pelos valseantes teclados de Wania, convida para um baile solitário rumo ao abismo. A terceira faixa é a minimalista Anos. Lembrando algo de X-Mal Deutschland, Ciro, Wania e Anna repetem uma única frase: "O que eu tenho feito todos esses anos?".

O clima desesperador do álbum dá uma trégua com a onírica Jardim das Gueixas. Com participação de Akira Tsukimoto (Akira S & As Garotas que Erraram) no stick, é uma música que nos envolve suavemente com sua textura oriental. Essa foi uma das poucas faixas que permaneceria no futuro repertório solo de Ciro. O lado A do álbum fecha com a instrumental A Queda do Solar de Usher, uma solene peça atmosférica inspirada no conto homônimo de Poe. Os timbres e melodias viajantes, além do surpreendente canto erudito de Marinella, justificam as referências ao Cocteau Twins.



O Lado B do disco abre com Lágrimas, uma melancólica canção de amor e desilusão. Na sequência, temos a instrumental Opus 2, transbordando melancolia em um ritmo cadenciado. Tão Perto, a faixa com o rock mais convencional do disco, tem participação de Fernando Deluqui (RPM) na guitarra. Enérgica e dançante, é também presença constante nas pistas que conseguem manter viva a memória da produção gótica brasileira. Foi também a única que conseguiu um relançamento. Em 2005, a faixa foi remasterizada para a seminal coletânea de pós punk brasileiro: “The Sexual Life of the Savages”.

Quebrando o ritmo, temos Soldadas. É a canção mais política do disco. Mas vai além de um simples discurso antibélico, afinal: "A guerra somos nós dois / a guerra são eles três / a guerra está no falar / a guerra não se acaba". Já a umbrosa Neste Deserto - inspirada nas ideias do filósofo budista Nagarjuna - tem um clima desolador que nos remete a uma viagem solitária em paisagens áridas. Aqui, a atmosfera gótica é levada aos últimos limites, casando com a poesia minimalista e niilista de Ciro: "Sei que te amo / mas isso é pouco / pode ser tudo / mas tudo é nada". Pois é, nem o amor salva na dura viagem do Cabine C. E o desfecho primoroso do LP se dá com o instrumental inebriante de Fósforos de Oxford, de sabor árabe e lembrando alguns momentos de Dead Can Dance.


"(O disco) percorre um roteiro. Passa pelo Oriente Médio na música que dá título ao LP; Buenos Aires no tango Lapso de Tempo; ou Japão através de Jardim das Gueixas." - Ciro Pessoa para a Bizz. 



No geral, o álbum foi bem recebido pela crítica. O pós punk soturno do Cabine C agradava porque soava autêntico e se diferenciava das outras bandas do mercado. "Fósforos" estava em plena consonância com um fenômeno que era chamado de gótico, sobretudo na Inglaterra. Antes desse álbum, nada havia sido feito no Brasil com tamanha consistência. O álbum todo tinha essa estética.

Show de lançamento da coletânea "Não São Paulo".
Era esperada a presença da banda no segundo volume, o que não aconteceu.

O fato é que o Fósforos de Oxford não vendeu como o esperado. Cerca de oito mil cópias foram vendidas, pouco para as expectativas da gravadora que almejava voos mais altos. Mas é importante observar que essas marcas foram alcançadas sem uma distribuição eficaz e sem nenhum esquema de divulgação. A RPM Discos foi a falência logo depois, gerando uma longa disputa judicial entre seus representantes e Ciro (a gravadora também cobrava um empréstimo que havia feito à banda). Esse estresse acabou afetando o grupo, que (também devido conflitos internos) começou a se desfazer.

Marinella e Anna Ruth deixaram a banda. Dois argentinos chegaram a substituí-las e Ciro se esforçava para produzir e lançar algum material novo. Quatro músicas inéditas chegaram a entrar no repertório: "Acidentes", "Recado Chinês", "Cotonetes Disconexos" e "Nossas Cabeças são Nossos Erros". Uma versão de "Sete Nomes", excelente música do Smack, também era tocada nas apresentações.
O segundo disco já tinha nome (Cotonetes Disconexos) e proposta estética (mais experimental e lisérgico), porém jamais saiu do papel. Em 1989, o Cabine C encerrou definitivamente suas atividades.


Ciro Pessoa para o Vitrola Verde:
"A verdade é que foi ficando cada vez mais difícil fazer shows, sobreviver [...] Fomos nos cansando desta história ridícula, limitada e preconceituosa que é a música no Brasil e nossa resistência no underground foi chegando ao fim".

Décadas depois, Marinella também deu sua versão para a revista Cult_47: 
"Acho que as relações pessoais entre nós quatro começou a se confundir, e por conta disso houve uma implosão. Não levamos este trabalho adiante por causa disto. Não vou entrar em detalhes, pois isto diz respeito não só a mim, e respeito a privacidade deles também. E as vezes um trabalho artístico é como um ciclo, tudo tem seu tempo, começo, meio e fim".




Após a saída do Cabine C, Anna Ruth e Marinella formaram o Diorama, uma banda só de garotas:

                                       

Com o fim do Diorama, Anna Ruth seguiu na música, inclusive com uma interessante carreira solo no projeto "Anna Ruth e os Visitantes". Marinella se estabeleceu em Londres, teve eventual participação em outros projetos, mas passou a se dedicar ao audiovisual. Wania Forghieri, até onde sei, após separar-se de Ciro não participou de outras bandas. Ela migrou para a área da pedagogia terapêutica. 

Ciro, por sua vez, tentou prosseguir com novos projetos, como o "CPSP" e o grupo "Ventilador", ambos de vida breve e com sonoridades distantes do Cabine C. Por um tempo, afastou-se da música, sofrendo com dependência química. Manteve-se em carreira de jornalista, trabalhando em diversas revistas.
 

Industria Mirabili - Obscuro projeto experimental de Akira S e Ciro Pessoa.


Anos mais tarde, Ciro retomou a carreira musical em projeto solo. Foram dois álbuns lançados: "No meio da chuva eu grito Help" (2003) e "Em dia com a Rebeldia" (2010). Diferentes do Cabine C, mas bons discos de rock em meio ao marasmo do rock mainstream brasileiro. Em 2015, reuniu seus poemas no livro: "Relatos da Existência Caótica". E prosseguiu na música, dedicando-se ao projeto Flying Chair ("Pânico e Solidão" e "Jardim das Gueixas" eram as músicas do Cabine C no repertório).

Durante a fase mais aguda da pandemia, em meio a um tratamento contra um câncer, Ciro contraiu Covid-19. Ele faleceu na madrugada do dia 05/05/2020. Em 2021, produzido pelo jornalista Wladimyr Cruz, o documentário "Quem É Ciro Pessoa?" trouxe um merecido registro e homenagem à sua obra.




Matéria: Sad Freon.
Fontes:
Revista Bizz
Blog Disco Furado
Jornal Folha de São Paulo
Jornal O Estado de São Paulo
Programa Vitrola Verde
Arquivo Pessoal Freon e Cid


ÁLBUNS DISPONÍVEIS:







7 comentários:

  1. PARABÉNS e muitíssimo obrigado por me trazer a este site raríssimo. Pois raras são as pessoas afortunadas com informação e com sensibilidade para apreciar a beleza na tristeza e a energia do lado sombrio da música.

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  2. Ótima matéria , é uma pena que uma banda maravilhosa como o Cabine C tenha se desfeito .Não me canso de ouvir , e com o passar do tempo o Cabine vai virando mais lendário e marcante no underground brasileiro .Banda Dark , Brasileira , que canta em português e ainda segue fortes influencias de poetas malditos e musicalidade post punk ...Não tinha como não ser um trabalho maravilhoso , de qualidade e prestígio .Dá um banho em muitas bandas da gringa !

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  3. Ótimo texto parabéns a quem o escreveu, uma justa Homenagem ao Ciro Pessoa.

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  4. ótimo o registro sobre a banda CABINE C ...virou cult!! Abraços. Marcelo Buzato. CWB.

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  5. Tão Perto
    https://www.youtube.com/watch?v=GO--fGcN4bw
    Neste Deserto
    https://www.youtube.com/watch?v=K6Wedqpe5ek
    https://www.youtube.com/watch?v=blfRZU3Pyrs
    Lágrimas
    https://www.youtube.com/watch?v=zYy4keMz_Kk
    Pânico e Solidão
    https://www.youtube.com/watch?v=_XNHkzBlolA
    A Queda do Solar de Usher
    https://www.youtube.com/watch?v=zYy4keMz_Kk
    Opus 2
    https://www.youtube.com/watch?v=nnTmBoW30Vw
    Jardim das Gueixas
    https://www.youtube.com/watch?v=1dmOq3qOpY4
    Soldadas
    https://www.youtube.com/watch?v=K9oMw8t5imQ
    Lapso de Tempo
    https://www.youtube.com/watch?v=fUniBgrQAQw
    Fósforos de Oxford
    https://www.youtube.com/watch?v=Ng5Pop1rGXQ
    Anos
    https://www.youtube.com/watch?v=lGur_rXuyak
    Recado Chinês
    https://www.youtube.com/watch?v=iMvTURsl6Uw
    Nossas Cabeças São Nossos Erros
    https://www.youtube.com/watch?v=oK3GT8YhAF0
    Cotonetes Desconexos
    https://www.youtube.com/watch?v=ZQDCaImwASI

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